“¹ No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. ² Ele estava no princípio com Deus. ³ Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.”

João 1:1-3

Antes de mais nada, esse não é um blog cristão. Você deve estar se perguntando o que um trecho bíblico do evangelho de João tem a ver com psicanálise, e eu vou explicar.

A psicanálise é inaugurada por Freud no final do século XIX. A partir de suas experiências clínicas, cria uma teoria do inconsciente, segundo a qual traços mnêmicos, isso é, pedacinhos de memória sensorial de situações vividas desde a infância e socialmente reprimidas, são jogados para essa parte obscura da psique chamada Id, de onde ficam tentando voltar o tempo todo. Assim, as sensações infantis viriam a ser posteriormente sufocadas pelas vicissitudes da linguagem.

Lacan é um psicanalista pós freudiano do século XX. Sua grande virada em relação a Freud parte do entendimento de que a linguagem não é o que reprime a experiência, e sim o que a estrutura, num tempo lógico anterior a ela. Para Lacan, os seres falantes nunca tiveram nem nunca podem ter um acesso à realidade pura, apenas acessam uma construção da realidade em que as próprias estacas são a linguagem, o verbo.

Pense em como nomeamos o passar do tempo: aurora, manhã, meio-dia, tarde, crepúsculo e noite. Não nos atemos a cada ínfima gradação do dia e da noite, e certamente não nos pautamos nesse espectro de luz para funcionar, e sim em suas etapas. Ou em como comemoramos datas específicas: aniversário, Páscoa, Natal, Réveillon. Datas que não fazem a menor diferença para nossos gatos e cachorros, enquanto nós choramos por não termos atingido nossas metas de ano novo. Ou ainda, como algumas características da nossa aparência são consideradas bonitas em uma época e feias em outras. Nunca houve apreensão da realidade senão pelo que nos é dito sobre ela.

O próprio sujeito é uma função da linguagem, na medida em que antes mesmo do seu nascimento já é parte de uma história, seja a história de um filho desejado ou de uma gravidez não imaginada. Aqui, a linguagem é vista não apenas como uma secreção do pensamento do paciente, mas como aquilo que o inaugura enquanto humano.

Esse princípio sustenta a prática clínica na psicanálise lacaniana, pois entendemos que se é pela linguagem que tudo existe, então é pela fala que tudo pode ser reavaliado e reinaugurado. E é por isso que o que falamos e ouvimos na clínica tem efeitos.

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